segunda-feira, 22 de outubro de 2007

"Sabe no fundo eu sou um sentimental
todos nós herdamos no sangue lusitano
uma boa dosagem de lirismo além da sífilis, é claro.

Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas
em torturar esganar trucidar
meu coração fecha os olhos e
sinceramente chora..

Meu coração tem um sereno jeito
e as minhas mãos o golpe duro e presto
de tal maneira que depois de feito
desencontrado eu mesmo me contesto.

Se trago as mãos distantes do meu peito
é que há distância entre a intenção e o gesto.
E se meu coração nas mãos estreito
me assombra a súbita impressão de um incesto.

Quando me encontro no calor da luta
ostento a guda empunhadora à proa.
Mas o meu peito se desabotoa
e se a sentença se anuncia bruta
mais que depressa a mão executa
pois que senão o coração perdoa."

terça-feira, 16 de outubro de 2007

à boca, me busco nos teus beijos..
clareio de vento a branca pele,
desde o lábio - sossego no aperto
dos olhos, dois sonhos in-vento..
sei-os, me puxam.. vôo solto
- montanha acima - levando amoras
de presente/distância do pomar..

terça-feira, 9 de outubro de 2007

Quadro Completo da Primavera

Folhinhas.
Linhas. Zibelinas só-
zinhas.

ISTCHÉRPIVAIUCHAIA CARTINA VIESNI
Listótchki.
Póslie strótchec lis-
tótchki.

(Vladímir Maiakóvski - 1913
trad. Augusto e Haroldo de Campos)

de novo: intervalos do sono

o que olha
sempre cessa:

dia ou mundo!

o único é
ininterrupto -

por sua face
a alma desliza?

: cinzas!

e a luz não se divisa
do que sempre olha! -

cinzas movediças:

fora da luz

desfolham-se

(Guenádi Aigui - 1966
trad. Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman)

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Goya

Sou Goya!
Órbitas-covas cavou-me o inimigo, revôo de corvos na gula de espólios.
Sou guerra.
Sou grito
de angústia, burgos em fogo no guante nevado dos anos quarenta.

Sou garra
da fome.
Sou gorja
de mulher garroteada, cadáver-badalo dobrando numa praça calva...
Sou Goya!
Galas
da vingança! Devolvo a oeste de um golpe as cinzas ingratas do hóspede!

E gravo no céu da memória estrelas fixas como cravos.

Sou Goya.

(Andréi Vozniessiênski - 1960

trad. Haroldo de Campos)